"Eu tive um sonho que ninguém mais teve e joguei fora tudo de que não precisava. Pensamentos que não posso ceder pulsam em meu peito. Mesmo que eu ainda esteja no vale entre o real e o ideal e meus pés estejam presos por correntes de sacrifícios. Minhas inundações de impulso ainda não estão totalmente reprimidas. Porque eu tenho um coração que pulsa fervorosamente. Mentiras, medo, fachada, tormento. Ainda não sou suficientemente fraco para ser preso por tantas coisas negativas. Sou um trapaceiro que não conhece a solidão."
Termina de escrever e guarda o caderno em sua pequena bolsa. Coloca a alça em seu pescoço e contempla a cidade novamente. Aquele vagalume silencioso. Pensa em todas as pessoas que estão lá embaixo e como brincar com algumas. Ah... A ignorância é mesmo uma benção e, para ele, a melhor. Talvez só porquê a benção dele seja diferente. Olha para cima e o brilho da lua acerta seus olhos que cintilam em resposta como só os animais sabem fazer. Por reflexo, ou por hábito, puxa seu capuz e se encolhe quando capta algo com o canto dos olhos. Um pássaro. Um corvo para ser mais exato, o que era esquisito por ali mas isso não importava... Ninguém poderia vê-lo, estava no alto da torre do relógio. E as pessoas só se lembram que existe algo acima delas quando começa a chover.
Agachado na beirada, como um gárgula em sua eterna vigilância, permitiu-se um sorriso malicioso e resolveu que era hora de brincar. Escorregou até a escada e adentrou na torre. Enquanto descia os numerosos lances, pensava em várias formas de silenciar a voz em sua cabeça. Decidiu como faria. Num impulso tanto quanto infantil, começou a pular vários degraus de uma vez - o que dava um ar animalesco ao seu impulso inocente - com os olhos faiscando de expectativa. Um último salto atravessando um lance inteiro e estava de frente para a porta. Jogou seu cabelo para trás e dirigiu-se à porta. Saiu, inspirou uma boa quantidade daquele ar noturno e desmaiou com uma coronhada na cabeça.